A LÍNGUA


 A LÍNGUA

 

Eles gostavam tanto um do outro. Ou então, parecia! Nunca pensei que ele usasse o fio da navalha daquela forma. Depois de tantos anos de convivência e cumplicidade e paixão. O ser humano realmente é uma criatura estranha. Eu sei que o melhor de mim ainda está para chegar! Mas… Se eu olhar à minha volta, parece que já não há pessoas! Olha, Pedro, a vida é feita de pequenos nadas. Temos de viver em paz, é o que é. Ele andava sempre a dizer não consigo controlar este estado de ansiedade. Eu lembro-me muito bem. E de vez em quando cantava uma dos Xutos que eu curto bué, a carga pronta e metida nos contentores. Eu sei, e também lhe ouvia muitas vezes cantar aquela vive selvagem e para ti serás alguém nesta viagem. E selvagem foi ele, ao fazer aquilo à rapariga. Do que aquele gajo se havia de lembrar. Foda-se! Quem diria! E a Rafaela a morder o anzol, coitada! Na verdade, quando ele apareceu no final de agosto, depois de terem passado férias juntos lá em São Miguel, numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte, e se via o cometa Hale-Bopp, eu achei-o diferente! Muito mais magro e nervoso. Perguntei-lhe pela Rafaela. Ficou estático, meu. Parecia congelado. A Rafaela ficou nos Açores, disse ele. Então e as aulas? Não sei, disse ele. Isso é com ela! Agora o meu amor tem lábios de silêncio… E riu-se. Soltou uma daquelas gargalhadas dele. A malta já nem ligava. E como ele falava por metáforas, não dei importância... Pensei que tivesse bebido uns finos no café Cartola, como era costume nosso irmos lá. Não dei mesmo importância, mas fiquei a ouvi-lo e a observar. Pareceu-me que ele queria uma mão amiga. Ouvi-lhe ainda dizer: e mãos de bailarina, e voa como o vento, e abraça-me onde a solidão termina. Achei estranho, mas como ele tem a mania que é poeta! Entretanto, a Madalena foi para casa estudar e tentei sacar mais alguma coisa. Que é isso pá? Estás bem? Perguntei-lhe, mas ele só repetia o meu amor tem trinta mil cavalos. Aí eu achei que ele tinha ido à erva. Foda-se, como é possível um futuro médico ter-se metido nessas merdas! Os pais divorciaram-se, não te esqueças. Aquilo deu-lhe a volta à cabeça! Opá isso não é desculpa, tu sabes que os casamentos hoje são a fachada de uma coisa morta! Os meus vivem juntos há trinta anos, e o meu irmão é que não quer que eles se divorciem! A minha mãe faz-lhe a vontade! A minha mãe prefere apanhar uns murros! E ir para a escola com um olho negro! Era lá caso para ele traumatizar a rapariga daquela forma? Opá, aquela cena do já é dia e a luz está em tudo o que se vê, para mim, não faz sentido nenhum. Cada vez entendo menos o ser humano. Pede aí mais dois finos, meu, que agora pago eu. Vamos é pra casa! Não estou com vontade de aturar o Ladrão, hoje! Não veio o ladrão da República dos Cágados? Não veio, nem vem! Acho que o bicho está a marrar forte para fazer Anatomia. O exame é para a semana! Somos só nós os dois! Joana, mais dois finitos! Opá, vocês amanhã não entram aqui sem a máscara! E eu hoje não vos levo a casa! Rua! Vão cantar o fado na cama! É para ver se nos animamos! E pode ser que eu durma melhor esta noite, Joaninha linda! Meu, o exame do Harrison já me deprimiu o suficiente! O meu pai bem queria que eu fosse otorrino, mas a merda da nota foi 13.5. Só deu para ortopedia! A verdade é que eu sempre gostei de gargantas! Agora tenho de concertar ossos e receitar cálcio para a osteoporose às velhas! Que cena! Lembra-te que o próximo ano é uma capicua! Não deu para entrares na especialidade este ano. Deixa lá, pá, tentas para o ano! Opá, tem de ser, senão o velhote morre de desgosto! Mas só para terminarmos a conversa sobre a Rafaela, como soubeste a história toda? Eu tenho um búzio que me diz coisas estranhas ao ouvido!... Opá deixa lá estar a cóclea sossegada. O martelo, o estribo e a bigorna. Entras nisso para o ano! O que é que se passou? Anda lá que já é dia e a luz está em tudo o que se vê… Já estás é a alucinar! Eu sei praticamente o que tu sabes… Quando ele me disse o meu amor tem lábios de silêncio, julgo que a Rafaela já não falava… 

Anabela França Pais, in FLORES SAGRADAS





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